Quem passa defronte das vitrines das Lojas Pernambucanas não supõe. Mas, além de peças de roupa expostas com apuro, há ali uma ilegalidade. Dona da terceira maior rede varejista de vestuário do país, a empresa foi multada pelo Ministério do Trabalho, na semana passada, em R$ 2,2 milhões. Por quê?
Verificou-se que as Pernambucanas –faturamento anual de cerca de R$ 4 bilhões— carrega em sua cadeia produtiva um acinte. Parte das peças que comercializa era costurada num imóvel residencial assentado em São Paulo. Debruçados sobre as máquinas, 16 trabalhadores bolivianos, sob regime de trabalho degradante, análogo à escravidão, produziam casacos Argonaut, uma marca criada pelas Pernambucanas para o público jovem.
Deve-se a revelação à repórter Ana Aranha, que acompanhou batida de auditores do Ministério do Trabalho à residência que alojava a senzala da moda. Ela acomodou em notícia veiculada neste final um resumo do que foi constatato. Testemunhou coisas que não ornam com os mostruários de shopping.
Os neoesravos bolivianos recebiam R$ 20 centavos por peça costurada. Havia entre eles dois menores de idade. Submetiam-se a uma jornada de trabalho que ia das 8h às 22h. Três filhos de operárias transitavam por entre as máquinas. Os fiscais encontraram etiquetas das Pernambucanas grudadas nos casacos. Ao redor, uma atmosfera mortificadora.
A “fábrica” funcionava em dois cômodos da casa, cada um com 6m². A ausência de janelas tornava o ar quente. Fios elétricos pendiam do teto. No chão, sacos de roupa misturavam-se a sacos de batatas.
Ao final da inspeção, os fiscais colecionaram 41 infrações às leis que asseguram no Brasil ambiente de trabalho salubre e seguro. Verificaram, de resto, que os bolivianos eram mantidos sob o regime de servidão por dívida.
Vieram da cidade de El Paso, na região metropolitana de La Paz. Chegaram a São Paulo devendo o valor das passagens. Coisa de R$ 300 por cabeça. No final do mês, além de frações da viagem, descontavam-se dos salários despesas diversas –comida, fraudas, cartões telefônicos...
Num caso, o vencimento de R$ 800 foi reduzido a R$ 176. Para fugir do fim do mês no vermelho, os trabalhadores viam-se compelidos a esticar a jornada. Terminado o expediente, tinham à disposição um único banheiro. O chuveiro, com o fio desligado, provia banho frio. Para dormir, quartos apertados. Em vez de camas, colchões espalhados pelo chão.
Confrontada com o inacreditável, a rede varejista expediu uma nota. Lê-se no texto: “A Pernambucanas não produz, ela compra produtos no mercado e os revende no varejo”.
De fato, a contratação dos bolivianos deu-se de forma indireta. Trabalhavam para a confecção Dorbyn, que atende a encomendas das Pernambucanas. Ouvido, um dos diretores da da Dorbyn, Fábio Khouri, alegou desconhecer as condições da “oficina”. Curioso, já que gerente da firma visita a casa a cada 15 dias.
Durante a fiscalização, os auditores do trabalho acessaram e-mails de funcionários das Pernambucanas. As mensagens revelam que a rede de roupas define cada detalhe das encomendas que terceiriza: modelo, tamanhos, quantidades, prazos e preços das peças.
Como conseqüência da inspeção, além da multa milionária imposta às Pernamucanas, os 16 bolivianos tiveram reconhecidos os seus direitos. Receberam carteiras de trabalho e as verbas rescisórias –entre R$ 1.000 e R$ 5 mil, dependendo do tempo de cada um na senzala.
Os cálculos foram feitos por contadores a serviço das Pernambucanas. A Dorbyn incumbiu-se dos pagamentos. O aperto às Pernambucanas é parte de uma estratégia inaugurada em agosto de 2010 por auditores do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano.
O nome do programa como que reconhece uma realidade que transporta o Brasil para uma Era pré-revolução industrial. Estima-se que, só em São Paulo, há cerca de 8 mil neosenzalas como a que foi desmontada. Além de bolivianos, exploram sobretudo mão-de-obra paraguaia.
“Só as empresas que alimentam a cadeia podem mudar essa lógica”, diz Giuliana Cassiano, coordenadora do programa do Ministério do Trabalho.
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