Convocada sob estrondosa unanimidade, apoiada por governistas e
oposicionistas, a CPI do Cachoeira expôs seus calcanhares de vidro já na
primeira sessão deliberativa. Aprovou-se um plano de trabalho que,
seguido ao pé da letra, pode resultar numa pantomima que não cobrirá nem
os fatos e indícios já esmiuçados nos inquéritos feitos pela Polícia
Federal. Vão abaixo, em seis tópicos, os lances que sinalizam a
preparação do forno:
1. A Delta: Dono da empreiteira
pilhada em negócios ilícitos com a quadrilha de Carlinhos Cachoeira,
Fernando Cavendish foi solenemente ignorado no plano de trabalho
apresentado pelo relator Odair Cunha (PT-MG). A exclusão do empreiteiro
do rol inaugural de depoentes é inexplicável, inacreditável e
inaceitável.
É inexplicável porque o nome de Cavendish consta da Operação Monte
Carlo, um dos inquéritos que motivaram a instalação da CPI. Não
bastassem as menções, a PF informa que a Delta despejou R$ 39 milhões
nas caixas registradoras de empresas de fachada da quadrilha.
Suspeita-se que a verba tenha irrigado campanhas eleitorais. Não é
dinheiro de cafezinho. A suposição de que os cifrões saíram das arcas da
Delta sem o conhecimento do seu controlador é algo que não faz nexo.
O
desinteresse por Cavendish é inacreditável porque a voz dele soou numa
gravação feita às escondidas por dois ex-sócios. Considerando-se o
conteúdo, essa fita deveria atear em qualquer congressista um desejo
irrefreável de ouvir o empreiteiro, não o contrário. Cavendish disse:
“Se eu botar R$ 30 milhões na mão de políticos, eu sou convidado pra
coisa pra caralho! Pode ter certeza disso, te garanto. Se eu botasse dez
pau que seja na mão de nêgo… Dez pau! Ah… Nem precisava de muito
dinheiro não, mas eu ia ganhar negócio. Ôooo…”
Noutro trecho, o dono da Delta declarou: “Estou sendo muito sincero
com vocês: R$ 6 milhões aqui, eu ia ser convidado. Ô, senador fulano de
tal, eu tenho cinco convites aqui. Toma, tá aqui ó. Pá! Se convidar, eu
boto o dinheiro na tua mão.”
De resto, a sumiço de Cavendish do plano de trabalho da CPI é
inaceitável porque a Delta, sexta maior construtora do país, ocupa o
topo do ranking das obras do PAC, o bilionário programa de obras do
governo federal. Investigar a empresa em todos os seus desvãos (da sala
da diretoria à portaria) não é –ou não deveria ser— algo opcional.
Tornou-se um imperativo ético.
2. A geopolítica:
No plano de trabalho redigido por Odair Cunha e aprovado pela CPI,
anotou-se que a investigação vai abarcar a quadrilha e suas
ramificações. Ao citar o tentáculo privado da organização, o relator
escreveu que serão perscrutadas as relações da turma de Cachoeira “com
setores empresariais e agentes de mercado, inclusive com a diretoria da
Delta na região Centro-Oeste”.
Ora, Delta Centro-Oeste é coisa inexistente. Afora os contratos
beliscados na Esplanada dos Ministérios, a empreiteira toca obras em 23
Estados e no Distrito Federal. Imaginar-se que a empresa opera à magem
da lei apenas na região central do país é algo que, de novo, não orna
com a lógica. A Contraladoria-Geral da União aponta irregularidades em
canteiros administrados pela Delta desde 2008.
A despeito disso, Dilma Rousseff e sua equipe de controladores só
acordaram para a encrenca depois que a Delta virou sinônimo de
escândalo. Só há 15 dias, por ordem da presidente, o ministro Jorge
Hage, chefe da CGU, anunciou a abertura de procedimento administrativo
que deve levar à declaração da inidoneidade da empresa. Por que demorou
tanto?, os membros da CPI deveriam estar perguntando aos seus botões.
Embora espremido por vários de seus pares, o relator Odair bateu o
pé. Recusou-se a excluir do seu plano de ação a limitadora referência ao
Centro-Oeste. Trata-se, segundo ele, de mero “ponto de partida”. Alega
que o vocábulo “inclusive” autoriza a eventual ampliação do alvo. Se é
assim, por que diabos não suprimiu do texto, em nome da objetividade, o
dique regional? O desejo do PT de resguardar o governo federal e seu PAC
explica a obsessão.
3. Os governadores:
As operações da PF levaram à grelha dois executivos estaduais: Marconi
Perillo (PSDB), de Goiás; e Agnelo Queiroz (PT), do Distrito Federal. A
divulgação do audiovisual (vídeos e fotos) que desnudou a intimidade de
Fernando Cavendish com o governador do Rio adicionou Sérgio Cabral
(PMDB) na coluna de devedores de boas explicações. O que fez a CPI? Por
ora, nada.
Para não dizerem que não falou de espinhos, o relator Odair programou
para 12 de junho uma “audiência pública para debater as relações do sr.
Carlos Augusto de Almeida Ramos com governos estaduais.” Governos? Sim,
isso mesmo. Nem sinal dos nomes do tucano Perillo e do petê Agnelo.
Nada do pemedebê Cabral. Signatário de requerimentos de convocação dos
três, o tucanato silenciou. O petismo ecoou o silêncio. Ficou no ar um
cheiro de arranjo, um odor de deixa-como-tá-pra-ver-como-é-que-fica.
4. O procurador-geral: Nenhum nome
foi mais mencionado na reunião da CPI do que o de Roberto Gurgel. O
senador Fernando Collor (PTB-AL) insistiu na tese de que o chefe do
Ministério Público Federal precisa ser convocado. O deputado Cândido
Vaccarezza (PT-SP) deu-lhe razão: “O procurador ter sentado nestas
investigações por três, quatro anos não é correto. Ele deve explicações à
sociedade brasileira.”
De fato, Gurgel não está bem posto em cena. Recebera em 2009 o
resultado da Operação Vegas. Nesse inquérito, a voz de Demóstenes Torres
já era ouvida nos grampos da PF em diálogos tóxicos com Carlinhos
Cachoeira. Ainda assim, o papelório e os CDs foram tratados na
Procuradoria a golpes de gaveta por três arrastados anos.
Convidado
a comparecer à CPI, Gurgel invocou uma limitação funcional. Alega que,
depondo como testemunha, ficaria impedido de atuar nos inquéritos
abertos agora, a seu pedido, no STF. Verdade. Ex-procurador da
República, o senador Pedro Taques (PDT-MT) citou na CPI as leis e os
artigos que dão suporte à argumentação de Gurgel. Porém, a convocação do
procurador não é a única forma de forçá-lo a explicar-se.
A CPI tem poderes para, por exemplo, exigir de Gurgel uma
justificativa escrita. Ele diz que o inquérito de 2009 não continha
indícios que justificassem sua ação. Se é assim, por que não arquivou?
Sustenta que optou “por sobrestar o caso, como estratégia para evitar
que fossem reveladas outras investigações relativas a pessoas não
detentoras de prerrogativa de foro [investigados sem mandato],
inviabilizando seu prosseguimento, que viria a ser formalizado na
Operação Monte Carlo.”
Ora, a Monte Carlo nasceu de uma iniciativa da PF, não de uma ordem
de Gurgel. Pela lei, o procurador-geral pode, em benefício da
investigação, aguardar por um desfecho mais conclusivo. Mas precisaria
ter manifestado a intenção num ofício interno. Não consta que Gurgel
tenha assinado algo parecido. Quer dizer: faltam explicações. E a CPI,
se quisesse, teria como buscá-las sem afrontar as prerrogativas
funcionais do procurador-geral.
5. Os congressistas: O plano de
trabalho aprovado nesta quarta (2) prevê que a CPI jogará luzes sobre as
ramificações de Carlinhos Cachoeira no Poder Legislativo. Agendou-se
para 31 de maio a inquirição de Demóstenes Torres. Será ouvido depois
que já tiverem passado pelo banco da CPI o próprio Cachoeira e seus
operadores sem mandato. Beleza. E quanto aos deputados federais cujas
biografias foram umedecidas no Cachoeiragate? Nada.
Afora o pedido de abertura de inquérito contra Demóstenes, já
afogado, a Procuradoria da República requereu ao STF a instauração de
processos contra três deputados: Carlos Leréia (PSDB-GO), Sandes Júnior
(PP-GO) e Stepan Nercerssian (PPS-RJ). Encontram-se com água pelo nariz.
Mas a CPI, curiosamente, não parece interessada em desatar os nós
monetários que os unem a Cachoeira. Por quê? Qualquer criança de cinco
anos é capaz de responder.
6. O calendário:
O relator Odair Cunha anotou no item três do seu plano de ação: “O
prazo para conclusão dos trabalhos da CPI é de 180 dias, com término em 4
de novembro de 2012.” Os regimentos da Câmara, do Senado e do Congresso
prevêem que comissões parlamentares de inquérito são passíveis de
prorrogação.
Considerando-se as dimensões do aguaceiro, seria lícito supor que a
nova CPI cogitasse a hipótese de esticar o seu calendário. Com o
assentimento de seus pares, o relator prefere não considerar, nem como
hipótese, a ideia de uma prorrogação. Na semana passada, logo depois de
ser acomodado na cadeira de relator, Odair Cunha dissera, em timbre
peremptório:
“Nós temos que analisar o que realmente existir de provas, de
indícios. E, a partir dessas provas ou indícios, produzir uma
investigação que pode atingir A ou B. Essa é uma questão que nós não
temos controle. […] Produziremos uma investigação doa a quem doer.”
Considerando-se o resultado da sessão inaugural, Odair, os 65% de
governistas da CPI e até um pedaço da bancada oposicionista parecem
agora mais preocupados em controlar “o que nós não temos controle”,
escolher o A e o B que “uma investigação pode atingir” e administrar a
cota de sofrimento de cada um. Se doer, que não doa tanto. Encrencas
assim, tão vastas e multipartidárias, são um convite à construção dos
fornos onde são assados os grandes acordos. Resta saber se o
imponderável vai permitir.
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