Projeto para a Serra do Mar naufragou e a ferrovia da Serra da Mantiqueira serviu à Revolução de 32
Para Ubatuba e avante!
No final do século 19 o café entrava em declínio em toda a região. Neste período assume grande importância a cidade de Taubaté, com investimentos na indústria de transformação. Simboliza este período a criação da Companhia Taubaté Industrial (CTI), pelo empresário Félix Guisard, em 1894.
O prédio da CTI, construído próximo à ferrovia. Félix Guisard pretendia ser um dos usuários da via até Ubatuba
Sete anos antes de Guisard instalar sua CTI, empresários do café optaram por tentar baratear o preço do produto exportado e projetaram uma nova ferrovia entre Taubaté e Ubatuba.
A iniciativa foi dos empresários Francisco Ribeiro de Moura Escobar e Victoriano Eugenio Marcondes Varella. Em 1887 eles receberam autorização do governo de São Paulo para levar os trilhos de Taubaté até São Luiz do Paraitinga. O prazo para a construção era de 12 anos e os empresários iam além: o pedido ao governo era para a exploração do trecho até 'São José do Paraizo', uma área hoje pertencente à Itajubá (MG).
Decreto de 1887 concede exploração de trecho ferroviário para empresários de Taubaté
O caminho de ferro interessava também à Ubatuba, já que desde a inauguração da Central do Brasil o porto da cidade estava com capacidade reduzida.
A Estrada de Ferro Taubaté-Ubatuba foi financiada exclusivamente por capital privado e para tal tarefa foi criado o Banco de Taubaté. Os trilhos foram importados da Inglaterra e seriam assentados em duas frentes: uma partindo de Taubaté e outra de Ubatuba.
O que os cafeicultores não sabiam é que o investimento em uma nova estrada de ferro aceleraria o processo de falência do grupo. Em 1893 o governo republicano anunciou o fim dos incentivos para importação. Resultado: trilhos não chegavam mais, a mão de obra não tinha com o que trabalhar e meses depois o projeto foi abandonado. Pior: o Banco Popular de Taubaté anunciou sua falência.
Em total crise devido à queda do preço do café no mercado internacional, os cafeicultores pediram ajuda ao governo. Em 1906 representantes dos Estados do Rio, Minas e São Paulo se reuniram em Taubaté e assinaram um compromisso para subsidiar o produto. Este era o trato pelo qual ficou conhecido o "Convênio de Taubaté".
Enquanto isso o projeto da ferrovia continuou suspenso, mas os investidores da Taubaté-Ubatuba ainda tentaram terminá-la. O governo republicano extendeu o prazo de concessão da via, mas nenhuma obra efetiva foi realizada neste tempo e a concessão foi retirada em 1922.
A herança deixada pelo 'finado' projeto foi o bairro do Registro, em Taubaté, único a ter uma estação desta ferrovia. Os trilhos foram retirados e poucas estruturas ainda existem dentro de fazendas entre os bairros Registro e Cataguá.
Um caminho para Piquete
Se em Taubaté o projeto da ferrovia estava engavetado, em Lorena um novo caminho de ferro surgia. No dia 3 de fevereiro de 1902 desembarcou em Lorena um pelotão do Exército com 450 homens. O objetivo era construir uma ferrovia até Benfica (Piquete), onde o Exército Brasileiro estava implantando uma fábrica de pólvora.
"O ramal de Piquete surge de uma necessidade de fazer uma ligação entre a unidade fabril de pólvora e o centro urbano de Lorena. O produto vinha para Lorena e ia para São Paulo e Rio de Janeiro", simplifica o historiador Francisco Sodero.
A ferrovia ficou pronta em 1906, três anos antes da Indústria Bélica Nacional (Imbel), instalada em Piquete até hoje.
E o que a estrada de ferro de Piquete e a Taubaté-Ubatuba tinham em comum? Os projetos das duas ferrovias previam um prolongamento pela Serra da Mantiqueira até Itajubá, onde encontrariam os trilhos da Rede Sul-Mineira. O pensamento dos projetistas das duas ferrovias, certamente, estava voltado para uma rede ferroviária que ligasse toda a estrutura de portos e capitais do país. Estes ideais morreriam anos após com a chegada das rodovias.
Com a inauguração do caminho até Piquete a estação de Lorena passou a servir duas ferrovias, pois a construção original era de serventia da Central do Brasil.
A ferrovia de Piquete atendia seis partidas diárias partindo da estação de Lorena, seguindo por uma pequena vila militar, que existe até hoje no centro da cidade, depois para os bairros Nova Lorena e Cabelinha e para o cruzamento com o Rio Paraíba do Sul. A seguir, os trilhos cortavam áreas de fazenda, onde hoje está instalada uma indústria de explosivos, no início da Serra da Mantiqueira.
Trecho da ferrovia Lorena-Piquete no bairro Ponte Nova, em Lorena. Na época de cheia do Rio Paraíba a área dos trilhos chegava a ficar alagada. Foto: acervo Ércio Molinari
A ferrovia de Piquete transportava cargas, passageiros e operários da fábrica. Os passageiros seguiam até a Estação Estrela do Norte, próxima a região central da vila, com administração da Central do Brasil. Os operários e as cargas seguiam por pelo menos mais 3 quilômetros, pela Vila Militar e a fábrica de explosivos. Este trecho era administrado pelo Exército Brasileiro.
"Eram sete carros de passageiros, a plataforma de Lorena ficava lotada. Mesmo com a ferrovia, Piquete não teve desenvolvimento expressivo e os moradores vinham para Lorena fazer compras. E muita gente de Lorena trabalhava na fábrica", explica Ércio Molinari, da Casa da Cultura de Lorena, que gentilmente cedeu as fotos que ilustram esta reportagem.
A ferrovia na Revolução de 32
A década de 30 foi um período de transformação para as ferrovias. É a época que o transporte rodoviário começou a ser implantado - tema de nossas próximas reportagens.
Pouco antes da Revolução de 32 os cafeicultores passaram por um grande problema, o café já não era mais o condutor da economia do Vale do Paraíba e a quebra da bolsa americana em 1929 fragilizou ainda mais a economia cafeeira.
Mesmo assim estes cafeicultores se arriscaram e se juntaram à elite paulista para combater Getúlio Vargas e seu governo ditatorial. Era a Revolução Paulista de 1932. As batalhas ocorreram em diversos pontos de divisa de São Paulo, mas as mais sangrentas, contam os historiadores, ocorreram em Piquete e Cruzeiro.
Cruzeiro é o ponto do entroncamento do trecho que seguia para Minas Gerais, em direção à cidade de Passa Quatro. Nesta época a cidade foi local de concentração de boa parte da tropa paulista, que combatia no túnel de divisa dos estados, que possui mais de um quilômetro de extensão e foi o local onde dezenas de soldados morreram.
O lado do Governo Federal era forte, contava com toda a estrutura das forças armadas da época. Do lado paulista coube a um trem fazer a vez de 'arma letal' da Revolução.
O "Fantasma da Morte"
Fantasma da Morte foi o apelido dado ao trem blindado utilizado pelos paulistas no ramal de Piquete, em 1932. A composição era formada por dois vagões blindados, com canhões e bateria antiaérea. Além de carregar a tropa para o campo de batalha o trem era usado como veículo blindado de combate. A locomotiva ficava entre dois vagões.
"Era uma Maria-Fumaça que os paulistas transformaram em máquina de guerra. E onde ela ia soltava rajada de metralhadora para a direita e para a esquerda", conta Waldomiro Batista, ex-funcionário da fábrica de pólvora que já residia em Lorena na década de 30.
O Fantasma da Morte. Foto: reprodução Memorial do Imigrante (SP)
"Dois quilômetros e o inimigo à vista. Os homens avançavam, certos de que era um trem de mercadoria, ou de víveres (realmente, como estava disfarçado), e, em posição de atirar, ajoelhavam pelos trilhos. As nossas metralhadoras picotaram os inconscientes. A primeira impressão foi dolorosa. Pungente mesmo. Presenciar umas cenas destas". São palavras de Fernando Penteado Medici, que se alistou ao movimento Constitucionalista aos 17 anos, participou da Revolução e faleceu em 1947. Fernando escreveu o livro "O Trem Blindado".
Ainda segundo o livro de Medici, a presença do trem causava pavor e pânico aos ditatoriais, fazendo-os abandonar as posições. A estreia da composição ocorreu no dia 4 de agosto de 1932.
O "Fantasma da Morte" parado para abastecimento na estação de Guaratinguetá, em 1932
O Fantasma da Morte era revestido em aço e com pintura camuflada. Possuía canhão e metralhadora e carregava dois potentes holofotes na parte superior.
Durante a revolução a ponte ferroviária sobre o Rio Paraíba foi explodida pelas tropas federais. Posteriormente, em 1933, ela foi reconstruída e permanece no local até hoje servindo ao tráfego de uma estrada municipal.
Com o fim da Revolução, em outubro de 1932, o veículo foi levado pelo Exército e posteriormente desmontado. "Muitos soldados que vieram com a tropa de Getúlio eram nordestinos, alguns cangaceiros, ficavam assustados até com água saindo da torneira. Com o fim da revolução eles foram ficando e causaram muitos problemas em Lorena. Arrumavam briga, mexiam com a mulher dos outros. Foi um período difícil", relata Waldomiro.
A Ferrovia Lorena-Piquete voltou a prestar serviços para a fábrica de pólvora e ao transporte de passageiros, sendo desativada em 1985.
Esquerda: locomotiva da ferrovia Lorena-Piquete/ Direita: locomotiva da Central do Brasil
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