Quando saímos de casa para uma programação de dias, uma parte deste tempo passamos dentro do transporte fornecido pela empresa. Em São Paulo (e antigamente no Rio de Janeiro, na época da “velha Varig”) há ônibus em horários regulares no trecho Congonhas-Guarulhos-Congonhas.
Neste trajeto, que pode facilmente levar mais de uma hora, quase sempre encontramos colegas e amigos da aviação. Outras vezes encontramos na mesma condução os demais tripulantes do voo. Há dias em que aquele tempo entre um aeroporto e o outro é um momento de descanso e relaxamento, e outros em que colocar o papo em dia é a melhor coisa a fazer enquanto o ônibus vence o trânsito caótico da cidade de São Paulo.
É nas conduções fora de São Paulo, no trajeto aeroporto-hotel-aeroporto, que momentos gostosos podem ocorrer. Durante o voo nem sempre os comissários encontram tempo para ir à cabine de comando conversar, assim, é no caminho para o hotel que a tripulação pode bater um papo descontraído, e muitas vezes animado.
Quando a tripulação é pequena o clima “a bordo” vai de acordo com o ritmo do comandante, que pode estar caladão ou animado e falante. Eu faço parte deste segundo grupo, embora tenha momentos em que aproveito este tempo para fechar os olhos e descansar.
Antigamente o carro número 1 para transportar os tripulantes era a velha, e não tão boa assim, perua Kombi. Até meados da década de 90, se a tripulação não fosse superior a sete pessoas, era sempre uma Kombi! Para tripulações maiores, tinha que ser um ônibus, ou pelo menos um microônibus.
Um código não combinado diz que os comissários novos seguem nos bancos de trás, e o copiloto ao lado do comandante. Já o comandante tem um lugar quase certo nestas conduções, que nos veículos pequenos é o assento atrás do motorista.
Na velha Varig alguns ônibus tinham um cabeçote nas primeiras fileiras reservando os assentos aos comandantes. Uma grande bobagem, até porque o primeiro assento pode ser o mais perigoso, mas a verdade é que já houve vários casos de comandantes “desembarcando” do “seu” assento aquele que lá sentasse. Dizem que nestes assentos há um pino saliente sob o estofado, e por isso os comandantes fazem questão de se sentar ali. É o famoso “pino do comandante”.
Certa vez, acomodado na primeira fileira de assentos do ônibus estava um antigo comandante da empresa. Já havia se passado dois ou três minutos do horário de saída e o motorista parecia calmo em seu assento. O comandante, de uma forma rude que lhe era peculiar, deu uma chamada no motorista dizendo que já havia passado do horario.
O motorista não gostou do comentário e, levantando-se, disse que se o comandante estava com pressa, que assumisse a direção. O que ele não sabia era que aquele comandante já havia sido caminhoneiro! Pela maneira que o comandante, já sentado no assento do motorista, engatou a primeira marcha e suavemente iniciou a movimentação, o motorista percebeu que o cara entendia do assunto. Sem graça, disse ao comandante-motorista que infelizmente a seguradora do ônibus não permitiria aquela situação, e reassumiu a direção do ônibus.
Da mesma maneira que a parte mais perigosa da profissão é o trajeto de casa para o aeroporto, também nas conduções passamos por riscos de acidentes. Em Fortaleza já houve vários casos, sendo que em um deles, o comandante ficou afastado do voo por meses para se recuperar das lesões.
Mais recentemente, também em Fortaleza, houve um acidente grave e enquanto não chegava o resgate, transeuntes aproveitavam para roubar as malas dos tripulantes que estavam presos dentro do veiculo ou na calçada se recuperando do choque. Foi uma loucura, uma vergonha.
Nos Estados Unidos era muito comum a condução não ter espaço suficiente para carregar as malas da tripulação, então havia nelas um reboque com um trailer para colocar as bagagens. Certa vez, a caminho do hotel em Nova Iorque, a porta deste trailer abriu e algumas malas caíram na via sem que o motorista percebesse.
A condução seguiu normalmente até que uma camionete que havia presenciado a cena passou freneticamente lado do ônibus buzinando e abanando umas roupas pela janela. Só podia ser um maluco! Mas eis que alguém percebeu que na caçamba da camionete havia umas malas claramente identificadas como sendo de tripulantes! O alerta foi dado e o ônibus parou no acostamento para resgatar os pertences que haviam caído.
Certa vez, naqueles meses de alta crise na velha Varig, no trajeto do hotel para o aeroporto de Heathrow, em Londres, a conversa estava num rumo baixo astral, pois um dos copilotos do voo não parava de falar da crise. Dizia que a Varig estava para quebrar, que a administração isso, que a chefia aquilo, que o governo não estava ajudando, que nada funcionava, os aviões estavam ruim, os voos atrasados, e que ia dar tudo errado.
Por outro lado, dizia ele, a Tam estava com tudo: crescendo, ampliando a malha, recebendo novas aeronaves, contratando pilotos e com ótimas perspectivas para o futuro. Aquela conversa não estava legal, então pedi a ele para mudarmos de assunto. Em uma hora estaríamos decolando um MD-11 com 270 toneladas de peso e aquele momento estava inapropriado para aquele assunto baixo astral. Se ele desejasse, depois que atingíssemos o nível de cruzeiro, poderíamos discutir sobre a situação da Varig. Foram onze horas de voo até São Paulo e praticamente não se falou de crise.
Outra situação parecida aconteceu com o comandante Cunha, também em Londres, só que no trajeto aeroporto-hotel. Mal o ônibus deixou o aeroporto e o primeiro oficial do voo pediu permissão para atualizar os tripulantes sobre a situação da Varig.
Este colega fazia parte da diretoria da Associação de Pilotos da Varig, que naquela época travava uma dura batalha pela sobrevivência da empresa. Aproveitando-se do sistema de som do ônibus, em pé no corredor, ele discorreu sobre a crise, as perspectivas, dificuldades, ações, enfim um briefing completo para os demais 15 tripulantes e mais alguns familiares que estavam a bordo. Um panorama terrível em que nem o mais otimista dos otimistas deixaria de se preocupar.
Aquele papo não fez bem a ninguém, e o corpo do comandante Cunha reagiu. Já acomodado no quarto do hotel ele percebeu que não estava se sentindo bem. Pressão, suor, taquicardia, algo estava errado. Ligou pra o médico de plantão que atendia os tripulantes em caso de necessidade e rapidamente foi examinado.
O médico diagnosticou um caso de alto stress, dando a ele remédio pra pressão e impedindo que ele voltasse ao Brasil trabalhando. No dia seguinte, o comandante Cunha regressou ao Brasil devidamente acomodado na classe executiva e uma semana depois já estava apto a reassumir sua escala de voos. Condução não é local nem momento para baixo astral!
Recentemente fiz uma programação de dois dias com pernoite em Belo Horizonte. Foram apenas 12 horas de hotel, chegando as 22:40 hs e saindo as 10:40 hs da manhã seguinte.
Não houve tempo para passeio, mas em compensação, o trajeto de 45 minutos entre o hotel e o aeroporto de Confins foi divertidíssimo! Seis tripulantes no fundo do microônibus conversando, contando piadas e casos engraçados.
Foi, sem dúvida, o melhor momento de toda a viagem!
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