O trágico
desaparecimento do voo 447 da Air France, na madrugada de 1º de junho de
2009, continua assombrando o mundo da aviação. Como é
possível imaginar a queda, em pleno Oceano Atlântico, de uma aeronave
moderna, operada por uma companhia aérea de grande reputação, durante a fase
de voo mais "serena" - em cruzeiro? Ainda assim, estes
fatores somados não foram suficientes para evitar a perda do Airbus A330 e de
seus 228 ocupantes. A tragédia teve ainda maior impacto em nosso país, pois
foi do aeroporto do Galeão / Tom Jobim que o voo 447 decolou para a
eternidade.
Nos meses seguintes, um processo intensivo de busca das "caixas
pretas" deu-se a mais de 3.000 metros de profundidades. Somente quando
os gravadores de voz e dados foram encontrados, em abril de 2011 ,
é que o gigantesco e macabro quebra-cabeças começou a ser elucidado. E, ainda
que a investigação definitiva não tenha sido publicada, o Jetsite traz agora
a transcrição do conteúdo do CVR e do FDR.
A divulgação de parte do conteúdo foi feita no mês seguinte pela BEA - Bureau
d'Enquetes et d'Analyses - o órgão do governo francês que investiga e promove
a segurança no transporte aéreo daquele país.
Um quadro ainda mais extenso acabou sendo conhecido quando foi publicado na
França um livro com a transcrição completa do acidente: a obra, intitulada "Erreurs de Pilotage - Volume 5", escrita pelo autor e piloto Jean-Pierre Otelli, já leva à uma conclusão, atestada pelo próprio título do livro. Ainda assim, é bom lembrar que acidente nenhum ocorre por
um fator isolado. O que causa uma tragédia aérea é um sequência nefasta de
descuidos, falta de experiencia e fatalidades.
Neste caso, o A330 penetrou em um forte sistema climático, uma tempestade
tropical de notável força na região equatorial. Os tubos pitot congelaram, o
piloto automático desligou-se, os computadores de bordo perderam a capacidade
de controlar a nave e, ao mesmo tempo, fornecer dados confiáveis aos pilotos.
Ainda assim, a obra e as investigações, neste caso, não culpam o fabricante
dos tubos pitot, a fabricante do avião, a operadora Air France ou os
controladores de tráfego. A responsabilidade é
colocada diretamente sobre a tripulação e especificamente sobre os ombros de
um único tripulante. Certo? Errado? Tire você mesmo suas conclusões.
Na noite de 31 de maio de 2009, o voo AF 447 deixou o aeroporto Tom Jobim com
destino a Paris as 19h29. A aeronave era um Airbus A330-200, matrícula F-G
ZCP. Tinhas 18.870 horas totais e 2.644 voos (ciclos). A bordo iam 228
ocupantes, sendo 12 deles tripulantes. A primeira parte do voo transcorreu em
absoluta normalidade. Pesava ao partir 232.800 kg, ou seja, realmente no
limite de seu peso máximo de decolagem (MTOW de 233.000kg). O peso de todos
os ocupantes somados era de 17.615 kg, sendo 126 homens, 82 mulheres, sete
crianças e um bebê. No peso total, 70.400 kg eram combustível, assim
calculado: 63.900kg para a viagem, 1.460 para desvios em rota, 2.200kg de
reserva final, 1.900kg para alternar na chegada ao destino e 940 kg de
combustível adicional.
O jantar foi servido e retirado. Os passageiros em sua maioria, procuraram
dormir durante a parte noturna do voo, afinal, horas depois, todos chegariam
sãos e salvos à Cidade Luz, já no período do final da manhã. Aqueles poucos
que não conseguiam dormir, assistiam a filmes nos monitores individuais. A
bordo, a cabine estava escura e a movimentação era mínima.
A 1h36, o voo penetra na zona da tempestade tropical. Contrariamente à todos os aviões atravessando aquela zona, os pilotos do
AF 447 não solicitaram desvio na rota, optando por atravessar diretamente a
zona de turbulência. Voando a 35.000 pés, o Airbus entra em meio às
nuvens formadas na tempestade, e começa a sacudir. A 1h51, o cockpit começa a
ser iluminado por luzes que se propagam nas janelas frontais como descargas
mágicas. O fenômeno assusta o relativamente pouco experiente Primeiro
Oficial, Pierre-Cédric Bonin, de apenas 32 anos e 807 horas no A330, que é quem
ocupa a poltrona da direita. Pierre pergunta ao comandante Marc Dubois:
"O que é isto?"
Dubois, um veterano de 58 anos, com 10.988 horas de voo, sendo 1.747 como
comandante do A330, lhe explica que aquilo é apenas uma aparição do famoso
fogo de Santelmo, fenômeno relativamente frequente ao se penetrar em nuvens
com aquelas características. O fenômeno nada mais é do que uma descarga
eletroluminescente provocada pela ionização do ar num forte campo elétrico
provocado pelas descargas elétricas, condição existente nas nuvens carregadas
que o AF 447 atravessava naquele instante. Mesmo sendo chamado de fogo, é na
realidade um tipo de plasma provocado por uma enorme diferença de potencial
atmosférica.
São agora 2 horas da manhã. David Robert, outro Primeiro Oficial, retorna à
cabine de comando depois de descansar por quase toda a primeira parte do voo.
Com 37 anos de idade, Robert é bem mais experiente que Bonin, com 6.547 horas
totais e 4.479 no A330. São 2h02 quando o comandante
Dubois deixa o cockpit para descansar. Isto ocorre de forma regulamentar em
voos longos como este, sem ferir quaiquer regras internacionais de navegação.
Dubois passa a ocupar um dos dois leito s destinados a esta função,
posicionados imediatamente atrás do cockpit. Hora de entrar dentro do cockpit
do F-GZCP.
02h03:44 (Bonin) Bom, está aí a convergência inter-tropical. Entramos nela,
está aqui, entre 'SALPU' e 'TASIL.' Sim, estamos bem no meio dela. (N.E.:
'SALPU' e 'TASIL' são "waypoints", pontos imaginários criados para
auxiliar na navegação.
02h05:55 (Robert) Ok, vamos chamar o pessoal lá atrás, é bom eles saberem.
02h06:04 (Bonin) Marilyn, é o Pierre aqui da frente... Em mais 2 minutes,
vamos entrar em uma área que vai dar uma sacudida aí, mais forte. É bom você
saber e cuidar aí da cabine.
02h06:13 (FA Marilyn) Ok, precisaremos nos sentar?
02h:06:15 (Bonin) Não seria má ideia. Avise os companheiros aí de trás.
02h06:18 (FA Marilyn) Ok, vou avisar. Muito obrigado!
02h06:19 (Bonin) Eu aviso assim que melhorar.
02h06:20 (FA Marilyn) Ok.
Os dois primeiro oficiais discutem a te mperatura externa, mais quente do que
o previsto, e que não permitiu a eles que subissem para uma altitude maior. E
comentam também que é melhor estarem voando em um A330, pois este tem
performance superior ao A340.
02h06:50 (Bonin) Ok, vamos ligar o anti-icing system. É melhor do que nada.
02h07:00 (Bonin) Parece que estamos no limite das nuvens, acho que estará
tudo certo.
Enquanto isto, o F/O Robert examina as condições meteorológicas em seu radar
e descobre que o mesmo não estava configurado para a correta detecção do
sistema climático que haviam penetrado. Robert percebe que o A330 logo
entraria em uma zona de intensa atividade climática e, percebendo que um
desvio seria recomendável, decide avisar seu colega, que é quem esta
pilotando o jato.
02h08:03 (Robert) Melhor curvar um pouco à esquerda.
02h08:05 (Bonin) Perdão, o que foi?
02h08:07 (Robert) Melhor curvar um pouco à esquerda. Estamos de acordo que
estamos no manual, não?
Bonin inicia a curva à esquerda. Bonin avisa que vai reduzir a velocidade e
pergunta a Robert se precisa ligar o anti-icing nos motores. Neste momento,
um alarme soa na cabine por 2.2 segundos, indicando a desativação do piloto
automático. Os três tubos pitot, entupidos com
cristais de gelo, já não fornecem dados básicos como velocidade para os
computadores que até então controlavam o voo do Airbus. Os pilotos teriam que
voar o avião manualmente.
02h10:06 (Bonin) Tenho os controles.
02h10:07 (Robert) Okay.
Os vários acontecimentos nos últimos minutos parecem surtir um efeito na
capacidade de julgamento de Bonin. O gelo, a descoberta do sistema de
tempestade bem à frente, o fogo de Santelmo, a tro ca de comando... Bonin
começa a reagir de forma irracional. Ele puxa o side stick para si e o Airbus
começa a subir abruptamente, a despeito do piloto saber que, devido ao peso
da aeronave naquele instante e à temperatura externa mais elevada, o jato não
poderia subir de forma segura e sustentável.
O computador do jato reage a este comando inesperado e abrupto e
imediatamente soa na cabine o alarme de estol (stall warning). Este alarme
voltaria a soar 74 vezes nos minutos seguintes. Bonin, puxando para trás o
sidestick, está efetivamente fazendo aquilo que não se deve fazer quando uma
aeronave encontra-se em estol ou no limiar de um estol: puxar o nariz para
cima. Surpreso, seu colega pergunta:
02h10:07 (Robert) O que é isto?
02h10:15 (Bonin) Não há uma boa... Não há uma boa indicação de velocidade.
02h10:16 (Robert) Nós perdemos a... A... As velocidades, então?
A aeronave está agora subindo a nada menos que 7.000 pés por minute. E, ainda
que ganhe altitude, ela vai perdendo velocidade até chegar a meros 93 nós.
Robert percebe o erro de Bonin e trata de avisá-lo.
02h10:27 (Robert) Preste atenção à velocidade! Preste atenção à velocidade!
02h10:28 (Bonin) OK, OK, vou descer!
02h10:30 (Robert) Estabilize...
02h10:31 (Bonin) Ok!
02h10:31 (Robert) Desça, desça... Tá indicando que ainda estamos subindo,
então desça!
02h10:35 (Bonin) Certo!
Com o sistema de anti-icing atuando, o aquecimento derrete o gelo e um dos
tubos pitot volta a funcionar. Os displays na cabine voltam a fornecer
informações corretas de velocidade.
02h10:36 (Robert) Desça!
02h10:37 (Bonin) Sim, aí vamos, estamos des cendo.
02h10:38 (Robert) Calma, vai devagar!
Bonin reduz a pressão no side stick, reduzindo o ângulo de subida - mas,
ainda assim, subindo. A velocidade é recuperada e sobe para 223 nós. O alarme
de stall warning se cala. Por um momento, os pilotos
parecem ter recobrado o controle da situação.
02h10:41(Bonin) Nós estamos, é, nós ainda estamos em "climb".
De fato, Bonin ainda não abaixou ou, ao menos, nivelou o nariz do avião.
Robert resolve chamar ao cockpit o comandante Marc Dubois.
02h10:49 (Robert) Maldição, onde está ele?
Neste ponto, o Airbus já subiu mais de 2.500 pés acima de sua altitude quando
a situação saiu da rotina. Por razões desconhecidas, Bonin volta a puxar o
side stick para si, a umentando o ângulo de subida e colocando a aeronave
novamente em condição de estol. Soa novamente no cockpit o alarme de estol.
O fato é que, desde o momento em que os tubos pitot se congelaram, os
computadores do Airbus saíram de seu regime normal de atuação ("normal
law" para o regime "alternate law," um programa
que permite maior atuação dos pilotos e que inibe os sistemas de proteção ao
voo encontrados no regime "normal law". Neste regime, os
computadores de jatos Airbus "assumem" a pilotagem e, na prática,
impedem o avião de entrar em estol. Já, quando o sistema está no regime
"alternate law", a realidade é que os pilotos podem, eventualmente,
estolar a aeronave.
É absolutamente provável que Bonin não soubesse disto e, portanto, nunca
tivesse voado no regime "alternate law". Portanto, pode-se
inferir que ele desconhecesse as características de pilotagem em situações
como esta. Pode ser que Bonin tenha assumido que a aeronave simplesmente não
poderia estolar, pois isto é ensinado a todo piloto de Airbus: o sistema de voo
protegerá o avião de um estol. O que talvez Bonin não soubesse eram a s
diferenças de atuação dos computadores nos regimes "normal law" e
"alternate law".
02h10:55 (Robert) Maldição!
O segundo tubo pitot volta a funcionar normalmente. Os aviônicos agora trabalham
sem restrições. Os pilotos dispõem de todas as informações necessárias para
voar seguramente. Daqui para a frente, o fator contribuinte para esta
tragédia passa a ser um só: erro humano.
02h11:03 (Bonin) Estou em TOGA, hem?
TOGA é o acrônimo para "Take Off, Go Around", ou seja, máxima
potência dos motores. Bonin, ao afirmar ist o, dá a clara indicação que está tentando aumentar a potência e ganhar altitude, ou
seja, deter a queda. O problema é que ele voa neste momento a 37.500 pés, com
o ar rarefeito e sustentação muito menor. Os motores produzem menor
potência nesta altitude e assim, menor sustentação. Levantar o nariz, a esta
altitude, ao invés de fazer o avião ganhar altitude, produzirá o efeito
contrário se a aeronave estolar.
Ainda que a reação de Bonin pareça irracional, ela se coaduna com o cenário
de um indivíduo vivenciando um estresse severo. Em condições assim, as
partes do cérebro que comandam a criatividade são desligadas; o indivíduo
aferra-se àquilo que já experimentou e aprendeu em seu treinamento. Ainda que os pilotos sejam capacitados a voar manual mente
suas aeronaves, o padrão é que isto seja feito a baixa altitude. Não é
de surpreender, portanto, que, em meio à tempestade, sem referência visuais
externas, Bonin tenha tentado voar o Airbus como se estivesse próximo ao
solo, aplicando potência máxima e puxando mais uma vez o nariz para cima. Enquanto isto, Robert tenta chamar pelo interfone o
comandante Marc Dubois de volta ao cockpit.
02h11:06 (Robert) Diabos, ele vem ou não vem?
O Airbus agora atinge sua máxima altitude. Motores a plena potência,
nariz em ângulo de ataque de 18 graus acima do horizonte (o mesmo ângulo
empregado em uma decolagem normal), o enorme jato voa por alguns segundos na
horizontal e então começa sua vertiginosa queda. Alarmado, Robert reage
quando o jato inicia a queda.
02h11:21 (Robert) Ai nda temos potência! O que acontece neste puteiro? Não
entendo o que está acontecendo!
Diferentemente de um jato da Boeing, os side sticks nos jatos da Airbus podem
ser movidos de forma independente. "Se um piloto no lado direito
está puxando, o piloto no lado esquerdo não sente isto em seu joystick"
ensina o Dr. David Esser, professor na escola de aviação Embry-Riddle. Desta
maneira, Robert simplesmente não tem ideia de que, a despeito de suas ordens
e das conversas trocadas, Bonin permaneceu praticamente todo o tempo puxando
para si o seu side stick.
Os dois Primeiro Oficiais estão perdendo a batalha contra a pilotagem do jato
por não aderirem aos preceitos básicos de algo que é ensinado a todo piloto;
o conceito de CRM, ou crew resource management. Essencialmente, eles não
estão conseguindo cooperar. Não está claro quem comanda e quem é
comandado, quem executa e quem dirige as ordens. Isto pode ocorrer quando há
dois profissionais de mesmo ranking na cabine, seja dois comandantes ou dois
Primeiro Oficiais. Enquanto isto, Bonin segue puxando totalmente para si o
side stick. Com o nariz elevado, o Airbus despenca em meio às nuvens,
chacoalhando fortemente em função da turbulência externa e do estol em que se
encontra.
Na cabine de passageiros, a sensação deve ter sido extremamente desagradável.
A queda do avião faz com que os ocupantes tenham a desagradável sensação de
leveza provocada pela queda. O ruído dos motores ao máximo e a trepidação
excessiva foram sentidos e certamente foram suficientes para acordar e
amedrontar todos os ocupantes. A velocidade vertical aumenta na medida que o
Airbus despenca. Se Bonin tivesse largado os
controles ou passado o comando a Robert, o Airbus teri a seu nariz abaixado e
a situação ainda poderia ser revertida. Bonin se desespera.
02h11:32 (Bonin) maldição! Perdi o controle totalmente! Perdi o controle
totalmente!
02h11:37 (Robert) Comandos à esquerda!
Finalmente, Robert, o mais sênior dos pilotos na cabine assume a pilotagem.
Infelizmente, a impressão que se tem é que ele também não compreende que o
Airbus está de fato estolando, e instintivamente puxa para si o seu side
stick. Ainda que o nariz esteja apontado para cima, o Airbus despenca
a um ângulo de 40 graus em relação ao horizonte. O barulho ensurdecedor do
alarme de "stall warning" continua a soar. Bonin,
depois de uma breve pausa, volta a puxar o side stick para si. Neste momento,
transcorridos apenas 91 segundos do início da crise, o comandante Dubois
retorna à cabine, perplex o.
02h11:43 (Dubois) Eeee! Que diabos vocês estão fazendo?
02h11:45 (Bonin) Nós perdemos o controle do avião!
02h11:47 (Robert) Nós perdemos totalmente o controle do avião! Não entendo nada
o que está acontecendo! Tentamos de tudo!
02h11:52 - (Dubois) Então peguem os comandos logo!
Neste momento, o Airbus passa pela marca de 35.000 pés com apenas
100 nós de velocidade horizontal, nariz para cima em 15 graus e descendo a
mais de 10.000 pés por minuto, em ângulo de 41.5 graus - uma atitude que
seria mantida, com pequenas variações, até o impacto com o oceano. E ainda
que os tubos pitot estejam agora perfeitamente funcionais, a velocidade
horizontal é tão baixa - agora abaixo de 60 nós - que as indicações de ângulo
de ataque são consideradas inválidas. O alarme de estol silencia-se,
contribuindo para a impressão dos pilotos que , de fato, os computadores do
avião estão fornecendo indicações espúrias e, que, portanto, o avião não
estaria mesmo estiolando - quando de fato está. E como.
O comandante Dubois opta por ficar na poltrona central, de observador. Ele
não tenta ocupar sua poltrona na esquerda, talvez pela dificuldade de se
locomover enquanto o jato despenca rumo ao mar. Não lhe ocorre perguntar quem
está comandando o voo. Dubois tenta apenas
compreender o que teria levado o Airbus a se comportar assim, sem questionar
ou ordenar o básico: que um dos pilotos efetivamente "voe" o avião.
02h12:14 (Robert) O que você acha? O que você acha? O
que devemos fazer?
02h12:15 (Dubois) Bem, eu não sei! Está descendo!
Volta a soar o alarme de estol, mas nenhum dos pilotos comenta sobre isto.
Eles passam a discutir qual seria a origem da perda de controle. Dubois
ordena a Bonin que mantenha as asas niveladas. E os
três passam a discutir abertamente se o avião estaria de fato caindo ou
subindo, ainda que os instrumentos mostrasse isto claramente. Ao se
aproximar da altitude de 10.000 pés, Robert tenta
retomar o comando e empurra o seu side stick para a frente, tentando
abaixar o nariz do jato. Mas, como Bonin permanece puxando para si o side
stick no lado direito, o avião entra na situação de
"comando duplo" (dual input). O sistema de computadores
obedece os comandos de Bonin, mantendo o nariz elevado e o Airbus em queda
livre.
02h12:26 (Robert) A velocidade?
02h12:27 (Robert) Você está
subindo. Você está caindo, caindo, caindo!
02h12:30 (Bonin) Mas eu estou caindo?
02h12:42 (Bonin) Quanto subimos?
02h12:44 (Dubois) Não é possível!
02h12:45 (Robert) Como está a altitude?
02h12:52 (Bonin) Estamos caindo ou não?
02h13:01 (Robert) Agora você está caindo!
02h13:04 (Dubois) Coloque as asas na horizontal!
02h13:07 (Bonin) É o que estou tentando fazer!
02h13:09 (Dubois) Coloque as asas na horizontal!
02h13:25 (Bonin) O que está havendo... Por que nós continuamos caindo?
02h13:32 (Bonin) Vamos passar pela marca de 10 mil pés!
02h13:36 (Bonin) Nove mil pés!
02h13:40 (Robert) Suba! Suba! Suba! Suba!
02h13:40 (Bonin) Mas eu estou com o side stick puxado o tempo todo!
Finalmente, Bonin conta aos colegas o fator crucial que selaria a sorte de
todos a bordo. Neste momento, intervêm a experiência do comandante Dubois.
02h13:42 (Dubois) Não, não, não... Não suba! Não, não!
02h13:43 (Robert) Então desça! Me passe os controles! Me passe os controles!
Bonin finalmente cede os controles e
Robert finalmente abaixo o nariz da aeronave. O jato começa a ganhar
velocidade horizontal, mas ainda mergulha rumo ao mar à razão de 10.000 pés
por minuto. Ao chegar a apenas 2.000 pés sobre a superfície do oceano, um
novo alarme soa na cabine: é o GPWS, Ground Proximity Warning System, que
indica que o Airbus aproxima-se perigosamente do oceano. Não há mais chance
de recuperação para o voo 447. Por incrível que possa parecer, Bonin mais uma
vez agarra seu side stick e mais uma vez o puxa completamente para si,
colocando novamente o Airbus na situação de "comando duplo" (dual
input).
02h14:05 (Dubois) Atenção, você está subindo!
02 h14:07 (Robert) Estou subindo?
02h14:07 (Bonin) É o que nós devemos fazer, estamos a 4 mil pés!
02h14:18 (Dubois) Então puxe!
02h14:21 (Bonin) Puxa, puxa, puxa, puxa!
02h14:23 (Robert) Maldição, nós vamos cair! Não posso acreditar nisso!
02h14:25 (Bonin) O que está acontecendo?
02h14:27 (Dubois) Dez graus de elevação!
Exatamente 1.4 segundos depois, o cockpit voice recorder pára de funcionar.
Os ocupantes do voo 447 têm morte instantânea quando o enorme A330 colide
violentamente contra o Oceano Atlântico. No momento do impacto, a razão de
descida era de 10,912 pés por minuto; a velocidade horizontal era de apenas
107 nós, a atitude era de 16.2 graus "nose-up", a asa esquerda
estava 5.3 graus abaixo da linha do horizonte e a proa era de 270 graus.
Depois de transcritas a caixa preta e analisado o FDR, de posse dos primeiros
dados enviados ainda naquela fatídica noite, a aviação mundial nunca mais
seria a mesma. Muitas lições foram dolorosamente
aprendidas com a tragédia do Air France 447. Pilotos comerciais em
todo o mundo deverão agir de forma diferente quando confrontados com um
alarme de estol em alta altitude. Companhias aéreas
vão modificar seus treinamentos, incluindo alguns dos ensinamentos aprendidos
neste caso. Entre os quais, é bom destacar: atenção total às condições climáticas
e ao uso do radar; melhoria nos procedimentos de CRM, sobretudo quando houver
apenas dois Primeiro-Oficiais no cockpit; maior compreensão e
disseminação do que ocorre quando um jato da Airbus passa a ser operado em
regime de alternate law; praticar as técnicas de pilotagem manual em voo de
cruzeiro.
Este acidente também explicita uma tendência c rescente: a crescente
"fé" dos aeronautas na capacidade "infalível" de suas
máquinas, cada vez mais automatizadas. Ainda que
centenas de acidentes tenham de fato sido evitados, nos últimos anos, pela
incrível capacidade de automação dos aviões comerciais, é preciso lembrar que
é o último e preponderante elemento na cadeia de segurança: o homem.
É fácil criticar a atuação dos aeronautas da Air France do conforto de uma
poltrona, na cama de seu lar. Mas quem seria capaz de se colocar na posição
de infalível" quando confrontado com a mesma situação experimentada pela
tripulação do AF447: uma tempestade em uma noite escura, 12 km acima do
oceano, com indicações espúrias nos instrumentos - afirmar: "eu teria me
salvado".
Quem poderia atirar a primeira pedra, se a companhia seguiu todos os
procedimentos mund ialmente aprovados? Operar voos longos como
este com tripulação composta (1 comandante e 2 Primeiro-Oficiais) é de fato
procedimento legal, ainda que muitas empresas optem por tripulação de
revezamento (2 comandantes e 2 Primeiro-Oficiais) em jornadas comparáveis. Em retrospecto, é fácil pensar: e se ao menos um comandante
estivesse sempre aos controles? Talvez a inexperiência de Bonin
não se mostrasse catastrófica.
Certamente a decisão de não desviar da
tempestade, contrariamente ao que fizeram todos os outros aviões que por ela
passaram naquela noite, tenha sido o fator que precipitou a cadeia de eventos
que levou o AF 447 ao seu túmulo sob as ondas. Mas ainda assim, ele poderia
ter sido salvo nos minutos seguintes. Aí, entra um componente que não está
escrito em manual algum. Entrou, de forma definitiva, a mão pesada e
invisível do destino.
|
2 comentários:
Que maravilhoso relato deste acidente,Agora deu para entender o porque do desastre ocorrido, fica mais uma vez comprovado que desafiar a natureza pode ser fatal para quem a desafia, por mais que o homem construa uma super máquina não se deve menospreza-la, ("jamais")
Para se ver, que desafiando a natureza o homem pode se dar mal ( porque os pilotos não desviarão da pesada formação?
Postar um comentário